sexta-feira, 28 de julho de 2017

Todos queremos ser respeitados e isto faz bem à nossa saúde

Versos | Prosas - Por Hernani Pereira dos Santos

O que o hip-hip, os graffitis, o skateboarding e o streetdancing têm em comum?  Além de serem palavras estrangeiras, todas elas designam práticas artísticas ou esportivas com um claro apelo estético e emocional destinado à população marginalizada e periférica, apesar de hoje estarem bastante difundidas nos contextos os mais diversos. Afinal, estas práticas surgiram todas de contextos periféricos – a maior parte delas, dos subúrbios e periferias estadunidenses. Contextos periféricos habitados por gente periférica.

 A maior parte desta gente era formada por jovens. Jovens estes que lidavam, diretamente, com a questão de qual identidade deveriam conquistar e defender para si. Identidade esta que, por sua vez, só poderia ser conquistada e defendida em face do outro, daquele que é diferente de mim. Assim surgiram diversas tribos urbanas, algumas das quais foram, com o tempo, assimiladas pela população periférica brasileira, novamente por uma questão de identidade e de diferença. A grande questão é que nem sempre somos respeitados em nossa identidade e em nossa diferença. Lembre-se, a título de exemplo, da recente proposta de criminalização do funk (outro nome importado, mas apropriado de acordo com todas as idiossincrasias das populações brasileiras). Alegando a pretensa defesa da “criança, o menor, adolescentes e família”, contra um suposto “crime de saúde pública”, esta proposta teve mais de 20.000 assinaturas e foi encaminhada para consulta pública (maiores detalhes podem ser consultados aqui:  http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129233). 
Basicamente, o que se está dizendo é que esta prática cultural não deve ser reconhecida social e legalmente e que todo aquele que se vale dela com fins de autorrealização não pode mais contar com este laço de solidariedade que lhe garantia, pelo menos, a liberdade de seu exercício. Não é novidade alguma afirmar que somos seres sociais. Mas, talvez caiba enfatizar que a maneira como nos tornamos seres sociais e nos mantemos fiéis em nossos laços de sociedade depende da maneira como somos reconhecidos e respeitados. O primeiro reconhecimento, certamente, vem de nossos laços familiares mais íntimos. E a nossa confiança nos outros vem do amor que a nossa família é capaz de nos oferecer. Muitos jovens, infelizmente, sofrem com a rejeição familiar por não se encaixarem no conjunto de valores de suas famílias. Isso, sem dúvida, reflete em prejuízo na capacidade que eles têm de confiar em outras pessoas e de se sentirem seguros – literalmente, “em casa” – perante o diferente.
A fala de uma figura pública tem, é claro, os mais amplos impactos sobre a maneira como uma pessoa se relaciona com os outros e com ela mesma. Os efeitos de uma fala transmitida em rede nacional, por exemplo, podem reverberar de diversas formas sobre a maneira como um indivíduo vê a si mesmo e aos outros. Um rebaixamento constante de uma identidade ou de um grupo pode levar à negação de determinados traços ou práticas por parte de um sujeito ou um grupo de sujeitos e mesmo à culpa e à vergonha de ser quem se é, ou, no lado contrário, à violência e à violação de direitos por parte de outro grupo. Tome-se como exemplo o caso de pessoas membros da religião candomblecista que, devido ao estigma social, preferem não assumir ou expressar a sua religiosidade em público, pois sabem que serão rechaçadas ou excluídas de uma determinada esfera de convívio social.
Tome-se, também, o caso de indivíduos negros que deixam de considerar positivamente os seus traços físicos, ou mesmo as suas capacidades psicológicas, devido a um rebaixamento social destas características e, associado a ele, a um certo ideal de que as características associadas ao “branco” são mais positivas. Estes são apenas alguns poucos exemplos. Ao longo de nossas vidas, também queremos compartilhar de nossas experiências, crenças e valores com círculos mais amplos de pessoas, das quais nos tornamos amigos. Com estas pessoas, nos associamos de maneira mais duradoura e em vínculos de maior reciprocidade e respeito. Para além destes, também esperamos que os círculos mais amplos de pessoas, ao que damos o nome de “sociedade”, nos deem o respaldo para que possamos exercitar a nossa liberdade de crença e de valores, conforme algumas regras básicas de convivência. Desta forma, não esperamos que o Estado, por exemplo, nos coíba de exercer determinadas práticas estéticas ou culturais e por meio das quais nos reconhecemos mutuamente como pertencentes a um grupo.
Existirão conflitos, sem dúvida, mas, quanto maior for a violência pela qual somos coibidos neste exercício, menor será, em retorno, a nossa confiança naquele que nos coíbe (obs.: isto vale, também, para as relações entre pais e filhos). Um espaço de negociação deve sempre ser mantido, sobretudo nos casos de conflito. Acontece que, em muitos casos, o reconhecimento social e o respeito nos são negados de modo injustificado. Não há boas razões pelas quais um sujeito negro não possa ter como positivamente valorado os seus traços físicos pelos seus próximos ou, então, não possa ser reconhecido como merecedor de um status social que se julga como merecedor no meio de um grupo. Durante muito tempo, tanto no Brasil quanto em outros países, a justificativa dominante para esta depreciação e este rebaixamento estaria na (suposta) inferioridade da raça negra. Esta justificativa teve, de início, uma base “científica”. Mas, nada mais do que uma base científica suposta.
Além disso, também se baseou em um sistema extremamente excludente e segregatório pelo qual as oportunidades de fruição do convívio social e de governo da própria vida lhes eram negadas. Um sistema que, por outro lado, beneficiou uma série de pessoas que detinham o poder sobre os negros. Todavia, rejeitada a ideia de que haveria uma “raça inferior”, por que, ainda, mantêm-se os preconceitos e as práticas de exclusão com relação às pessoas negras? Pessoas ainda acreditam que sujeitos negros não são merecedores do reconhecimento social – e este reconhecimento não implica apenas o clássico sucesso financeiro ou de carreira. E este é um grande problema da sociedade brasileira nos dias de hoje (veja-se o texto de Karen Cogo sobre o racismo velado no Brasil, publicado aqui no Blog da CUFA: http://cufa-pr.blogspot.com.br/2017/07/o-racismo-e-velado-no-brasil_5.html).
 A ausência de reconhecimento e de respeito conduz a reações e emoções negativas nas pessoas. Aquele que se vê não reconhecido e não respeitado se vê ora com vergonha, ora com sentimento de culpa, ora com raiva ou com indignação moral. A coisa só piora quando a este cenário se soma a violência, seja ela física ou mesmo simbólica. Ter os cabelos puxados, ser esbofeteado, levar uma rasteira, ouvir palavrões ou palavras de rebaixamento moral, direcionadas para si ou para o grupo ao qual se pertence, ser impedido de transitar em um local público por conta de determinadas características físicas ou comportamentais ou por conta de seu credo, tudo isto é violência e tudo isto acontece ainda nos dias de hoje. Ver-se diante da negação dos próprios direitos é, pois, uma violência para com o sujeito: ele sê vê ou se sente como menor do que o outro e, portanto, como menos digno. A experiência constante destas emoções negativas tem, basicamente, duas saídas: por um lado, o sujeito pode se sentir menos capaz, menos potente, menos “energizado”, em seu dia a dia e perceber-se, com o tempo, depressivo; por outro lado, o sujeito pode, através da experiência destas emoções negativas, perceber que os seus direitos estão sendo violados e que não está sendo moralmente reconhecido e, assim, envolver-se na luta pela conquista de direitos e pelo reconhecimento social.
Ora, fica muito claro que, de um ponto de vista psicológico, o reconhecimento social e a garantia e o respeito de direitos básicos são um fator importante de nossa saúde. Se somos reconhecidos e respeitados, sentimo-nos capazes e podemos continuar no livre exercício de nossos projetos nas interações que mantemos com as outras pessoas. Se, por outro lado, não somos reconhecidos e respeitados, se temos os nossos direitos violados e sofremos violência, sentimo-nos incapazes, perdemos a confiança nos outros, deixamos de elaborar alguns projetos, que nos trariam maior satisfação com a vida, e podemos até mesmo chegar a evitar, progressivamente, o convivío social. É importante que todos os indivíduos possam ser reconhecidos e respeitados. Em alguns casos, podem precisar de ajuda especializada para voltarem a sentir-se capazes, seguros ou confiantes. Em outros, necessitarão da articulação de uma organização, de coletivos ou de um movimento social para que possam lutar por aquilo de que ainda carecem para o pleno exercício de suas capacidades e projetos no convívio social.
Hernani Pereira dos Santos é professor universitário do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Londrina, e doutorando da UNESP de Assis.
Contato: jose.cufaparana@gmail.com


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